O grito silencioso do cadáver de Ayslan Kurdi em uma praia turca fez o mundo despertar para a tragédia humanitária dos refugiados que agora chegam à Europa. Para que isso não se repita é preciso agir e não se esquecer que somos todos imigrantes
Mariana Queiroz Barboza (mariana.barboza@istoe.com.br)
A cena é chocante. O menino, de apenas três anos, rosto enfiado na areia, inerte ao vai e vem das ondas. Está vestido como qualquer menino de três anos cuidado com o carinho de mãe zelosa. Camiseta vermelha, calça jeans que mal lhe cobre os tornozelos e singelos sapatos azuis. Está morto. Assim como mortos estão seu irmão e sua mãe. Talvez seja pelo sapato azul, pela pele clara ou só pelo olhar desolado do guarda que o observa, mas a imagem desse pequeno cadáver fez o mundo finalmente acordar para o drama de centenas de milhares de pessoas que têm se jogado de forma desesperada nas águas do Mediterrâneo neste verão europeu. Só nos últimos dois anos, meio milhão de pessoas se aventuraram em perigosas viagens para fugir da guerra, da fome, do horror que assola o Oriente Médio e o Norte da África. Mais de cinco mil deles tiveram o mesmo destino que Aylan Kurdi, o jovem sírio que se transformou no símbolo desta que é a maior crise migratória na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Até a manhã da quarta-feira 2, quando o corpo de Kurdi foi dar na praia de Bodrum, na Turquia, os líderes europeus estavam mais preocupados em transferir a responsabilidade do problema do que encontrar solução para o destino de uma população em movimento que só faz crescer. Pareciam, todos eles, ter se esquecido do passado recente vivido pela própria Europa. Diante do drama de famílias inteiras enfrentando as águas do Mediterrâneo, europeus do Sul e do Norte, do Leste e do Oeste, não conseguiam lembrar-se que do mesmo solo que habitam saíram dezenas de milhões de pessoas em direção ao Novo Mundo há pouco mais de um século. Até a imagem icônica do pequeno cadáver de Aylan Kurdi gritar com a força do horror, a Europa e o mundo pareciam ter se esquecido de que todos somos imigrantes.
É uma crise que só cresce. De janeiro a agosto, mais de 350 mil novos migrantes chegaram à Europa, 25% a mais que todo o ano passado. Para a chanceler alemã, Angela Merkel, a crise não é temporária. “Nós estamos diante de um desafio nacional que será central não apenas por dias ou meses, mas por um longo período de tempo”, disse. Está marcada para 14 de setembro uma reunião das autoridades europeias para tentar organizar uma resposta à altura do desafio. Mas o embate ideológico será dos mais duros que o continente já viu. Enquanto nações como a Espanha aceitaram receber mais refugiados do que o previsto para 2015 e o primeiro-ministro britânico, David Cameron, que anteriormente havia dito que receber “mais e mais” pessoas não seria a resposta para a crise, mudou o discurso, outros líderes seguem relutantes. Na quinta-feira 3, o premiê húngaro, Viktor Orban, de centro-direita, disse que esse era um “problema alemão”.
A falta de solidariedade expressa por pessoas como Orban espanta por vir justamente de um continente responsável por grandes migrações em massa no passado. Ao longo do século 19 e início do 20, mais de 60 milhões de europeus migraram para reconstruir a vida nas Américas, inclusive no Brasil. Segundo o governo americano, entre 1820 e 1910, só os Estados Unidos acolheram mais de 25 milhões de europeus, cerca de 3 milhões apenas do antigo Império Austro-Húngaro, dois dos países que hoje são mais linha-dura com os estrangeiros. O Brasil, por sua vez, recebeu quase 5 milhões de europeus nesse período. Eram momentos distintos, é verdade, mas não raro os imigrantes que deixavam a Europa fugiam também de perseguições, da fome e da guerra.
Diante da crise atual, o governo alemão, o mesmo que há poucas semanas pressionou Atenas impiedosamente por mais austeridade, mudou as regras para acolher os mais vulneráveis. Sob a Convenção de Dublin, os refugiados devem pedir asilo ao primeiro país europeu a que chegam – na maior parte das vezes, Itália, Hungria e Grécia (essa mergulhada em sua própria crise econômica e política). Mas, com as novas regras, os sírios agora podem pedir asilo diretamente para Berlim. Ainda assim, Merkel alertou que, se os refugiados não forem distribuídos de forma justa entre os países-membro do bloco europeu, de acordo com o tamanho de sua população e economia, a livre circulação de pessoas garantida sob o Acordo de Schengen estaria ameaçada.
“A União Europeia não prestou atenção suficiente a todos esses sírios, em particular, que tiveram que deixar suas casas e foram acolhidos por Jordânia, Líbano e Turquia”, disse à ISTOÉ o historiador Demetrios Papademetriou, presidente do Instituto para Política Migratória na Europa, de Bruxelas. “O que aconteceu, no último ano, é que não só a situação na Síria piorou, como também as condições nos campos de refugiados se deterioraram.”
Mas se os governos hesitam em agir, os cidadãos europeus começam a se organizar voluntariamente. Um grupo de alemães, por exemplo, criou uma espécie de Airbnb, um site de locação de imóveis e cômodos, para dividir apartamentos com migrantes de diversos países e mais de 10 mil islandeses se reuniram no Facebook para oferecer suas casas a refugiados sírios. O bilionário egípcio Naguib Sawiris se ofereceu para comprar uma ilha na Grécia ou na Itália para receber, ainda que temporariamente, os refugiados sírios.
Essa é, afinal, uma crise humanitária. Há ao menos dois grupos tentando chegar à Europa. De um lado, são sírios, afegãos, iraquianos, curdos e africanos de diversas nacionalidades em busca de segurança. Do outro lado, estão os migrantes econômicos, que mudam de país na esperança de melhorar de vida, empreender, estudar ou conseguir um emprego melhor. Nos dois casos, é o desespero que os move.
INIMIGOS
Os países europeus se esquecem de seu passado e tentam
de toda forma manter os imigrantes longe de suas fronteiras
E diante do desespero, nada parece impedir que estas pessoas alcancem seu principal objetivo: uma vida digna. A Hungria, quando se viu no centro do movimento migratório, decidiu impedir a entrada de todos e construiu um muro de arame farpado ao sul do país, na fronteira com a Sérvia.
Para Joel Millman, porta-voz da Organização Internacional para a Migração, de Genebra, os muros só funcionam como subsídio para traficantes e contrabandistas. “Isso significa que vai custar mais caro para entrar naquele país, não que as pessoas vão deixar de atravessar a fronteira”, disse à ISTOÉ. “A crise acontece não só por causa da quantidade de pessoas, mas porque o sistema de proteção e segurança não funciona”, afirma Irina Molodikova, pesquisadora de migração na Universidade da Europa Central, de Budapeste.
A verdade incômoda é que a crise de agora é resultado direto da crescente instabilidade no Oriente Médio, causada em grande parte pelo próprio Ocidente. A desastrada invasão americana ao Iraque, com o apoio da Inglaterra e de uma série de países europeus, desestabilizou de maneira profunda a correlação de forças na região e abriu espaço para grupos islâmicos ultra-radicais. O Estado Islâmico, em última análise, é exatamente fruto desse novo cenário. Seguidores de uma linha do islamismo sunita defendida pela Arábia Saudita e por vários países do Golfo, o grupo surgiu no vácuo de poder e liderança que se abriu no Iraque. Hoje uma parte considerável dos migrantes que chega à Europa foge da barbárie sem fim dos radicais sunitas, exatamente como a família do pequeno Aylan Kurdi.
E que não se enganem os europeus e o mundo. Mais e mais imagens trágicas como a do corpo desfalecido do pequeno menino sírio irão surgir nas praias do Mediterrâneo ou nas linhas férreas dos Bálcãs nos próximos meses. Sem sinal de arrefecimento nas crises no Oriente Médio e no Norte da África, mais e mais homens, mulheres e crianças desesperadas irão jogar-se ao mar para tentar sobreviver, ainda que como mendigos em uma estação de trem de um país europeu periférico, como a Hungria. Este é um problema global. E o mundo precisa se unir para resolvê-lo, como já o fez antes em grandes crises migratórias do passado. Afinal de contas, de uma forma ou de outra, somos todos imigrantes.
Fotos: Nilufer Demir/AFP, ATTILA KISBENEDEK, ATTILA KISBENEDEK - AFP, GEORGI LICOVSKI/EPA; ISTVAN BIELIK/AFP, ACHILLEAS ZAVALLIS -AFP
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