NO GOVERNO -- Dilma Rousseff
determinou ao general Enzo Peri, que apurasse com rigor e celeridade as
denúncias de corrupção na Força (Foto: Pedro Ladeira / AFP)
HUGO
MARQUES
Em junho do ano
passado, a presidente Dilma Rousseff lançou um programa bilionário com o
objetivo de modernizar o aparelho estatal e, de quebra, estimular a economia,
que já caminhava a passos lentos àquela altura. Batizado de PAC Equipamentos,
esse pacote previa a liberação de 8,4 bilhões de reais para a compra de
materiais e maquinário pelos ministérios — incluindo a pasta da Defesa e as
forças militares a ela vinculadas, sempre queixosas de um quadro de
sucateamento a que estariam submetidas.
Ao contrário do que
ocorre em outras modalidades do PAC, o novo projeto saiu do papel. Só o Exército
gastou 1,8 bilhão de reais em caminhões, veículos blindados e até lançadores de
mísseis. Mas, como é, infelizmente, praxe nas empreitadas civis, a corrupção
parece ter encontrado uma brecha na esfera militar.
Oficiais do
Exército estão sendo investigados por terem sido acusados de achacar
empresários que venceram licitações para fornecer equipamento à força
terrestre. Eles teriam exigido propina em troca da assinatura dos contratos.
Reproduziram, assim, um modelo de desvio de verba pública que foi consagrado
recentemente nos ministérios dos Transportes e do Trabalho.
General Enzo Peri, comandante do
Exército, foi intimado a tomar providências, pela presidente (Foto: Gustavo
Miranda)
Resta saber se,
como os ministros demitidos daquelas duas pastas, os oficiais corruptos serão
responsabilizados. A presidente Dilma Rousseff já determinou a abertura de uma
sindicância para apurar o caso, que está sendo investigado sigilosamente pelo
alto-comando do Exército.
O PAC Equipamentos
entrou na mira dos corruptos tão logo anunciado. Em novembro do ano passado, a
empresária Iracele Mascarello, dona do Grupo Mascarello, fabricante de ônibus
do Paraná, procurou o senador Roberto Requião (PMDB-PR) e lhe contou que tinha
vencido uma licitação para vender 65 ônibus, por 17,8 milhões de reais, ao
Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), o grupamento que cuida da segurança
pessoal do presidente da República.
Iracele disse ao
senador que, às vésperas da assinatura do contrato, oficiais do Exército
exigiram propina para formalizá-lo. Caso contrário, nada feito. É a velha
máxima de criar dificuldade para vender facilidade. A proposta foi feita ao
representante da empresa em Brasília, Ivan Paiva, que se reuniu com os
achacadores, duas vezes, em restaurantes da capital. “Prefiro não assinar esse
contrato”, disse Iracele ao ser consultada pelo subordinado. Depois, relatou a
história a Requião. “Senador, entramos numa concorrência da Guarda Presidencial
para vender ônibus, ganhamos a concorrência, mas um oficial falou que só nos
classifica se pagarmos comissão, propina.”
Requião, que,
quando era governador, assinou contratos com a Mascarello e, portanto, conhecia
a empresária, levou o caso adiante. O senador contatou o ministro da Educação,
Aloizio Mercadante, que é filho de general e irmão de coronel, e narrou-lhe a
tentativa de achaque perpetrada por oficiais contra a empresa paranaense.
FORTE APACHE -- Esse é o apelido do
Q.G. do Exército em Brasília: uma sindicância apura se os selvagens da
corrupção conseguiram furar as defesas e estão operando ali dentro. Seria um
choque para a instituição mais admirada e respeitada do Brasil (Foto: Cristiano
Mariz)
O ministro repassou
a denúncia ao comandante do Exército, general Enzo Peri, e à presidente da
República. Dilma — que já demitiu sete ministros acusados de corrupção e
tráfico de influência — determinou a abertura imediata de uma sindicância: “Eu
vou dar doze horas para o Comando do Exército resolver isso”. Depois da
intervenção presidencial, a denúncia começou a ser apurada, e o contrato do
Exército com a Mascarello foi assinado.
“A citada
sindicância se encontra em curso e, até o presente momento, não há como
comprovar a ocorrência de propina no referido processo”, diz o Comando do
Exército em nota. “Registre-se que o processo licitatório já foi concluído, e a
empresa representada pelo denunciante contemplada na forma do que está previsto
nas normas vigentes.” De início, o governo aventou a possibilidade de a
denúncia ser falsa, um instrumento de pressão para acelerar a assinatura do
contrato, ou, na pior das hipóteses, um caso isolado. Antes fosse.
Os oficiais
corruptos atuavam de forma ostensiva e tentaram extorquir outras empresas. Caso
de um empresário de Brasília. Durante um leilão para a compra de caminhões, em
outubro do ano passado, esse empresário foi procurado por oficiais do Exército
para pagar 5% de comissão. Como não aceitou, disse ter sido desclassificado do
pregão, em que um dos itens era a compra de 125 caminhões-guincho, negócio
estimado em 60 milhões de reais.
Com medo, o
empresário afirma que não denunciou nem denunciará os integrantes do esquema de
corrupção. Ele conta que tem outros negócios com o governo e teme ser
prejudicado: “Quem não paga propina não leva. Os militares arrumam uma forma de
desclassificar a empresa”. A exclusão por esse tipo de critério, como se sabe,
encarece a negociação, já que o preço dos equipamentos acaba incluindo o
“custo-propina” — que, no fim das contas, sai do bolso do contribuinte.
Exemplo: um caminhão-guincho que custou ao Exército 485 000 reais poderia ser
comprado por 443 000 reais se a compra tivesse seguido os trâmites corretos.
Uma diferença
modesta, na casa do milhar, mas que, quando multiplicada pela quantidade de
unidades compradas, transforma-se em milhões de reais. Se aplicada ao total
gasto pelo Exército no âmbito do PAC Equipamentos, a propina de 5% renderia 90
milhões de reais aos achacadores de farda.
A investigação vai
esclarecer se os militares estrelados agiam sozinhos ou se tinham cobertura dos
superiores. Cada pregão é acompanhado por três militares, que se reportam aos
chefes sobre o andamento das compras. “Algumas pessoas no Comando do Exército
estavam distorcendo a situação. A gente louva a presidente Dilma, que está
fortalecendo a empresa nacional. Não tendo esse tipo de coisa, fortalece todo
mundo”, disse Antonino Duzanowski, diretor da Mascarello.
“Um oficial disse que só nos
classificariam se pagássemos comissão, propina.” Iracele Mascarello, dona da
Mascarello (Foto: Mauro Frasson)
Desde o governo
Lula, o Exército tem um papel importante no PAC. O ex-presidente convocava
unidades de engenharia militar para executar obras rodoviárias quando as
empreiteiras atrasavam os projetos — seja por disputas entre elas, seja para
pressionar a União a pagar mais pelo serviço. Em repetidas pesquisas de
opinião, o Exército aparece como a instituição mais admirada e respeitada do
Brasil. Não se pode permitir que a ação de alguns oficiais gananciosos atinja a
imagem do Exército. No ano passado, a Força gastou 2,6 bilhões de reais, dos
quais 1,8 bilhão do PAC Equipamentos e 800 milhões de repasses adicionais do
Ministério do Planejamento.
A assinatura do
contrato de compra de 86 viaturas blindadas Guarani por 240 milhões de reais,
em agosto, contou com a presença do ministro da Defesa, Celso Amorim, e do
comandante Enzo Peri. Para provar que a corrupção ainda não conseguiu penetrar
as defesas morais do Exército, o alto-comando já começou a passar um pente-fino
nas mais de 200 licitações feitas nos últimos meses pelos militares.
A segunda batalha
ROBSON
BONIN
O
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa,
trabalha para concluir neste mês um dos ritos derradeiros da maior batalha já
encampada por ele no Judiciário. A publicação do acórdão do julgamento do
mensalão vai consumar as penas dos condenados, abrir caminho para os recursos
finais da defesa e, no last act — expressão usada por Barbosa no
julgamento —, colocar atrás das grades os mensaleiros. Será o fim do maior julgamento
da história e o começo de uma nova, e não menos desafiadora, empreitada para
Barbosa.
No fim do ano passado, ao assumir a presidência do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável pelo controle externo do Poder
Judiciário comandado cumulativamente pelo presidente do STF, Barbosa elegeu
como prioridade de sua gestão encontrar uma fórmula para coibir o que ele
considera uma das mais nocivas práticas ainda toleradas nos tribunais
brasileiros — a advocacia de filhos, cônjuges e toda sorte de parentes de
magistrados.
A atividade de familiares de magistrados, na avaliação de
Barbosa, “fere o princípio do equilíbrio de forças que deve haver no processo
judicial” e divide os advogados em duas classes: os que têm acesso privilegiado
— podendo beneficiar clientes por causa disso — e os comuns, que não possuem os
laços de sangue para favorecê-los. “Filhos, mulheres, sobrinhos de juízes são
muito acionados por seus clientes pelo fato de serem parentes. Não é pela
qualidade técnica do seu trabalho. Sou visceralmente contra isso”, disse
Barbosa.
Tratado como tabu, o filhotismo nos tribunais já esteve na mira
de outro integrante do CNJ no passado. Ex-corregedora do órgão, a ministra do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), Eliana Calmon, foi uma das primeiras a
declarar guerra à prática. O problema, segundo ela, não está na atuação formal
dos familiares nos processos. Para esses casos, a legislação já conta com
mecanismos para coibir abusos. O problema está nas relações que acontecem fora
do processo, quando os parentes usam a proximidade com um juiz para fazer lobby
em favor de um cliente.
Conhecida pelo rigor de suas palavras, Eliana Calmon não
conseguiu encontrar uma solução para o problema durante os dois anos em que
esteve no conselho, o que demonstra a complexidade do assunto. O próprio
Barbosa, apesar de ser o comandante do Supremo, não escapará de
constrangimentos. O atual corregedor do CNJ, ministro Francisco Falcão, por
exemplo, tem dois filhos que atuam como advogados em processos que tramitam no
STJ, onde Falcão também trabalha.
Ele é, portanto, um caso que se encaixa na prática condenada por
Barbosa? A questão não é tão simples assim. Filhos e parentes de magistrados
que advogam não podem ser colocados em suspeição apenas pela certidão de
nascimento. O lobby familiar existe, é restrito a uma minoria na Justiça
brasileira e, por esse motivo, deve ser tratado com todo o cuidado, tanto que o
próprio Barbosa ainda não revelou seus planos para atacar o problema.
A ministra Eliana Calmon conta que os parentes-lobistas costumam
agir com discrição na corte. Eles não advogam oficialmente nos processos, mas
estão presentes quase diariamente nos corredores do tribunal: “Eles vendem a
possibilidade de influenciar nos processos aqui dentro”. A ministra gosta de
lembrar que certa vez expulsou do gabinete o filho de um ex-colega já
aposentado. “Ele veio com outro advogado me chamando de ‘tia Eliana’. Não sabia
nada da causa”. Os filhos dos magistrados chamam atenção não só pela
desenvoltura, mas também, segundo a ministra, pelos grandes clientes que
conquistam — bancos, empreiteiras, empresas de telefonia — e pelo sucesso
financeiro. “Os meninos aparecem de BMW, de Mercedes-Benz, morando em casas
luxuosas. Eu sou juíza há 34 anos e penei para ter o meu apartamento”, diz
Eliana Calmon.
Nas últimas semanas, VEJA ouviu juristas das maiores bancas de
advocacia do país. Todos só aceitaram falar sob a condição do anonimato. O
resultado mostra como pode ser complexa, ou até mesmo impossível, a missão de
tentar resolver a questão. Se, por um lado, a advocacia de parentes pode
comprometer o equilíbrio de forças nos julgamentos, por outro, um familiar de
juiz não pode ter o seu direito de advogar limitado simplesmente pela suspeita
de que será beneficiado.
A solução mais próxima para tentar reduzir o problema — todos os
juristas ouvidos foram unânimes em dizer que não há uma solução definitiva —
será conscientizar magistrados, advogados e os próprios clientes que contratam
familiares a denunciar os abusos sempre que forem confrontados.
Mas, enquanto o assunto continuar sendo um tabu nos tribunais, a
solução permanecerá no campo dos discursos.
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