Proposta em curso na Câmara dos Deputados ameaça
tirar poder de investigação de promotores e procuradores em casos criminais.
Supremo Tribunal Federal também vai deliberar sobre o tema
Silvio
Navarro, Laryssa Borges e Carolina Freitas
O
procurador-geral da República, Roberto Gurgel (Elza Fiúza/ABr)
No ano em
que o Brasil comemora a vitória dos valores republicanos com o fim de uma era
de impunidade de políticos corruptos, um grupo de deputados federais e de policiais
faz avançar sem barulho na Câmara uma proposta que, se aprovada, reduzirá a
atuação de uma das instituições que mais contribuem para a democracia no
combate à corrupção e ao crime organizado: o Ministério Público. “É o típico
exemplo do retrocesso institucional brasileiro: quando a gente avança em um
aspecto vem a política, que mistura questões corporativas com questões
republicanas”, afirma Lenio Luiz Streck, procurador de Justiça no Rio Grande do
Sul e professor de Direito Constitucional da Unisinos.
Sob a
rubrica de PEC-37/2011, a proposta prevê um remendo ao texto da Constituição
Federal, proibindo que promotores e procuradores conduzam investigações na
esfera criminal. A PEC define como competência "privativa" da polícia
as investigações criminais ao acrescentar um parágrafo ao artigo 144 da
Constituição. O texto passaria a ter a seguinte redação: "A apuração das
infrações penais (...) incumbe privativamente às polícias federal e civis dos
estados e do Distrito Federal." O texto foi aprovado em comissão especial
na semana passada e agora segue para análise da Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara dos Deputados e para duas votações no Plenário da Casa. Em
seguida, vai ao Senado.
A
legislação brasileira confere à polícia a tarefa de apurar infrações penais,
mas em momento algum afirma que essa atribuição é exclusiva. No caso do
Ministério Público, a Constituição não lhe dá explicitamente essa prerrogativa,
mas tampouco lhe proíbe. É nesse vácuo da legislação que esse grupo de
parlamentares e policiais tenta agora agir. Oficialmente, o autor da
propositura é o deputado Lourival Mendes, do minúsculo PT do B do Maranhão.
Parlamentar de primeiro mandato, o delegado de carreira maranhense encampa os
interesses das polícias Civil e Federal, que reivindicam o monopólio das
investigações criminais.
As tintas
da PEC foram dadas por entidades de classe da polícia. “Ou reagíamos ou
seríamos sufocados e destruídos pelo Ministério Público”, justifica Marcos
Leôncio Sousa Ribeiro, presidente da Associação Nacional dos Delegados de
Polícia Federal (ADPF). Na visão dele, o MP tomou contornos de um “megapoder”.
“Eles têm uma necessidade insaciável de acumular poder. Usurpam funções da
polícia judiciária sem ter essa previsão constitucional. O pessoal brinca que eles
pediram para tirar das cédulas de real a inscrição ‘Deus seja louvado’ porque
não querem concorrência.” Prossegue Ribeiro: “O MP não quer investigar o
atacadão. Ele quer o filé mignon. O que dá trabalho passa para os bestas da
polícia judiciária ficarem enxugando gelo."
No
Supremo Tribunal Federal, está desde junho na gaveta do ministro Luiz Fux o
processo que pode pôr fim à polêmica sobre os limites de investigação do
Ministério Público e esclarecer de uma vez por todas as regras de atuação
conjunta entre a instituição e autoridades policiais – talvez antes mesmo da
votação no Congresso da malfadada PEC. Em agosto de 2009, a corte já havia
decidido que o veredicto sobre um recurso do ex-prefeito de Ipanema (MG),
exatamente este nas mãos de Fux, serviria de base para a solução dos
questionamentos judiciais sobre a proibição de promotores e procuradores
comandarem investigações. Mas o processo ainda não foi concluído.
Diante de
uma corte de onze ministros com quatro diferentes correntes de interpretação sobre
o tema, Luiz Fux paralisou a análise do caso. Para o magistrado, o tribunal,
mais do que impor ou não limites ao trabalho ao MP, precisa estabelecer a
abrangência da decisão, ou seja, se ela interferirá ou não nas milhares de
investigações chefiadas por procuradores e promotores em andamento.
Mesmo com
o julgamento em aberto, o STF discute, entre outros pontos, a possibilidade de
o MP conduzir investigações apenas se os próprios integrantes da instituição
estiverem sob suspeita, se agentes policiais forem o alvo da apuração ou ainda
se houver clara omissão da polícia em determinado caso. Na corte, também existe
a corrente de pensamento, da qual fazem parte Gilmar Mendes e Celso de Mello,
segundo a qual o MP pode conduzir apurações de crimes contra a administração
pública, não apenas atuar de forma complementar à polícia. Há ainda aqueles que
garantem a autonomia completa de investigação do MP, como Joaquim Barbosa, ou o
tolhimento total das atividades investigativas da instituição, como Marco
Aurélio Mello.
As
conflitantes interpretações dos ministros têm impacto direto, por exemplo, nas
investigações que levaram o empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, a ser
apontado como o mandante do assassinato do ex-prefeito de Santo André (SP)
Celso Daniel, em 2002. Um habeas corpus em favor do empresário pedindo a
anulação das investigações realizadas pelo MP tem sido julgado em conjunto com
o recurso.
O
assassinato de Celso Daniel, que assombra até hoje o Partido dos Trabalhadores,
aliás, é uma das principais vitrines da atuação autônoma do Ministério Público,
para quem a morte brutal não se resumiu a um crime comum, conforme concluiu a
polícia. Há uma década, o MP enfrenta uma batalha para provar que a morte de
Celso Daniel tem contornos que vão muito além de um sequestro equivocado
seguido de morte. Neste mês, reportagem de VEJA
trouxe o caso à tona: o publicitário Marcos Valério de Souza, operador do
mensalão, revelou em depoimento à Procuradoria-Geral da República que Ronan
Maria Pinto, um empresário ligado ao antigo prefeito, estava chantageando o
secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, para não envolver seu nome
e o do ex-presidente Lula na morte de Celso Daniel.
É
evidente que a atuação de promotores e procuradores também incorre em erros,
especialmente devido à inexperiência e ao deslumbramento com os holofotes de
alguns membros da instituição, movidos pela sanha acusatória – daí a série de
denúncias apresentadas com base em recortes de jornais, por exemplo. Porém,
apurações comandadas pelo Ministério Público contribuíram para desmontar
dezenas de casos de corrupção nos últimos tempos. Foi assim com a Máfia dos
Fiscais, em São Paulo, e com as denúncias de desvios envolvendo o ex-prefeito
Paulo Maluf.
O MP
também investigou personagens como o juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, e o
ex-senador Luiz Estevão, pivôs do desvio de milhões do Tribunal Regional do
Trabalho (TRT) paulista, e o ex-banqueiro Salvatore Cacciola, que sangrou os
cofres públicos no caso do Banco Marka. Foi o MP quem descobriu e denunciou os
horrores praticados pelo médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de
prisão por ter abusado de 56 pacientes em sua clínica – ele está foragido desde
o ano passado. Assim como a descoberta e desarticulação do “esquadrão da morte”
no Espírito Santo. A lista é grande e, recentemente, inclui o mais célebre caso
envolvendo agentes políticos, o mensalão, cujas condenações representam um
marco para o Judiciário do país.
“No
cotidiano, polícia e MP cooperam para as investigações”, afirma Alexandre
Camanho de Assis, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da
República (ANPR). “A PEC-37/2011 cria uma confrontação artificial, forjada por
setores minoritários e radicais da polícia. Todas as últimas operações
bem-sucedidas o foram por força da cooperação entre a polícia e o Ministério
Público.” Assis lembra que, se hoje a impunidade campeia o Brasil, muito pior
seria sem a atuação dos promotores e procuradores. “A corrupção está ligada a
altos cargos públicos e ao exercício do poder e da manipulação da máquina
pública. Se essa investigação é entregue exclusivamente para a polícia, fica muito
mais fácil sabotar, calar, retardar ou inviabilizar uma investigação. O
Ministério Público é uma magistratura vitalícia e que não se sujeita a nada, a
não ser a lei e à sociedade.”
Exemplo
internacional de retrocesso - Na última quinta-feira, durante a cerimônia de
posse do ministro Joaquim Barbosa na presidência do Supremo Tribunal Federal
(STF), o procurador-geral da República,
Roberto Gurgel, tocou no assunto e apontou a restrição dos
poderes do MP como “um dos maiores atentados que se pode conceber ao estado
democrático de direito”. E alertou: “Apenas três países do mundo vedam a
investigação do MP. Convém que nos unamos a esse restritíssimo grupo?”. Gurgel
se referia a Quênia, a Indonésia e Uganda. “Por que o Brasil tem de dar
exemplos negativos para o mundo?”, questiona o procurador gaúcho Lenio Luiz
Streck.
Em países
como Alemanha, Espanha, Itália e Estados Unidos, o MP tem um papel
preponderante na investigação criminal e no controle da polícia. Na Itália, o
trabalho de investigação dos promotores desmantelou a Máfia italiana com a
chamada Operação Mãos Limpas. “O que faz diferença nesses países é que há tem
um predador forte, o Ministério Público”, afirma Streck. Nos Estados Unidos, o
sistema é misto. A promotoria comanda investigações e os policiais trabalham
orientados pela promotoria.
A
Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece expressamente que o Ministério
Público deve dispor de um grupo de investigadores e ser encorajado a fazer
investigações independentes contra acusações de execuções sumárias. A entidade
recomenda que, se necessário, a legislação do país seja modificada para
facilitar essa tarefa dos promotores e procuradores. “Atribuir à polícia a
exclusividade para a investigação criminal é ir na contramão da jurisprudência,
do avanço histórico da proteção da cidadania e dos tratados internacionais
assinados pelo Brasil quanto ao combate à criminalidade”, afirma a procuradora
da República em São Paulo Janice Ascari.
Num ano
que termina com ares de progresso do Judiciário brasileiro, resta a pergunta: a
quem interessa tolher a atuação de promotores e procuradores no combate à
corrupção e ao crime organizado? Podem até surgirem interessados. Mas à
democracia, certamente, não.
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