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MUNDO: Médicos Sem Fronteiras relata abusos sofridos por refugiados na Europa

Em um novo relatório, a organização publica depoimentos retratando cotidiano de agressões, condições precárias e traumas
TERESA PEROSA

Refugiados caminham na fronteira entre Croácia e Sérvia (Foto: Juan Carlos Tomasi/MSF)

Um sírio conta como o bote em que estava com outros refugiados foi atacado por homens uniformizados com arpões. Outro afirma que foi agredido por policiais na Macedônia, roubado por criminosos na Sérvia. Esses depoimentos chocantes estão em um relatório da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), divulgado nesta terça-feira (19). O documento pinta um quadro desolador da recepção derefugiados e imigrantes na Europa e critica duramente as políticas a essas populações. Intitulado Rota de Obstáculos para a Europa, o documento de 60 páginas conta com relatos de profissionais da organização e depoimentos de pleiteantes de asilo coletados pela MSF em seus postos de atuação. “2015 será lembrado como o ano em que a Europa falhou catastroficamente em sua responsabilidade em responder às necessidades urgentes de assistência e proteção de milhares de pessoas vulneráveis”, afirma a organização.
Além do material impresso, a MSF divulgou fotos (confira a galeria abaixo) e vídeos mostrando o drama dos refugiados. Em um dos vídeos, a organização atua juntamente com o Greepeace para salvar crianças, adultos e idosos em botes superlotados perto da ilha grega de Lesbos. Kim Clausen, chefe de equipe da MSF, afirma que uma ONG médica e outra ambiental estão fazendo o que é obrigação dos governos. "Isso deveria ser assumido como responsabilidade dos países europeus para garantir que as pessoas possam fazer isso [cruzar a fronteira] de forma segura", diz. Assista abaixo às imagens clicando no link:
https://youtu.be/M1ofCuAZZpE

https://youtu.be/Q_bVoAJKI9I

A MSF esmiúça as inúmeras dificuldades enfrentadas por sírios, afegãos, iraquianos, eritreus, nigerianos e outros que, fugindo da guerra, da violência e da miséria, se arriscam nas rotas do Mediterrâneo – dificuldades pioradas, segundo a organização, pela falta de estrutura de acolhida, pela burocracia mutante dos procedimentos de pedido de asilo e pela hostilidade das forças de segurança nos locais de chegada e nos postos de fronteira. “Não só os países europeus falharam coletivamente em atender as necessidades humanitárias e médicas urgentes de refugiados e imigrantes chegando a fronteiras internas e externas da União Europeia, mas a lentidão e as políticas anti-imigratórias – desenvolvidas durante os últimos 15 anos e fortalecidas em 2015 – aumentaram a demanda por redes de coiotes e forçaram pessoas para rotas ainda mais perigosas que colocam em risco sua saúde e suas vidas”, afirma a MSF. 
A organização critica o investimento por parte dos governos europeus em iniciativas que tentam sem sucesso coibir os fluxos migratórios, ao invés de direcionar fundos para o atendimento de quem chega.  De acordo com o relatório, a MSF gastou €$ 31,5 milhões em sua operação na Europa durante o ano passado e mobilizou um total de 535 pessoas para atender refugiados e imigrantes. “Nunca antes a MSF teve tantos projetos na Europa, nunca antes a MSF decidiu mobilizar três barcos de busca e salvamento no mar para salvar vidas e nunca antes foi tão urgente que os governos europeus assumam suas obrigações internacionais e assistam as pessoas cujas vidas estão em risco”, diz o documento.
O documento é publicado em um momento particularmente delicado da crise humanitária na Europa, quando até países considerados mais receptivos a refugiados, como Alemanha e Suécia, aplicam novas restrições à entrada de pessoas. Depois de um ataque em massa a mulheres na noite de Ano Novo na cidade alemã de Colônia, perpetrado por uma maioria estrangeira, a chanceler Angela Merkel se viu pressionada a endurecer as medidas que permitem a entrada e permanência no país.
Grécia: o porto seguro precário
No ano passado, pouco mais de um milhão de refugiados e imigrantes chegaram ao continente europeu, a maioria por meio da rota entre Turquia e Grécia, via Mediterrâneo. Entre agosto e setembro, cerca de 4 mil pessoas, em média, chegavam todos os dias às ilhas gregas – no total, pouco mais de 851 mil entraram na Europa pelo país em 2015. “Um ano depois do início da crise, apesar das numerosas visitas por parte de representantes da UE (...), tanto a infraestrutura de recepção quanto o sistema de asilo da Grécia continuam falhando em se adaptar para as necessidades de refugiados e migrantes”, diz o relatório da MSF. Em Lesbos, um dos principais portos de chegada, os 700 leitos oferecidos pelas autoridades gregas, somados aos 780 disponibilizados por organizações humanitárias mal atendiam um quarto da população necessitada. A escassez de abrigo levava a centenas de pleiteantes de asilo a dormirem na rua, sem acesso a recursos básicos e vulneráveis a crimes e violência. “As pessoas chegam às ilhas gregas depois de terem enfrentado muito sofrimento. Nós vimos crianças e adultos ainda molhados, forçados a dormir ao relento”, declarou um médico que atua como voluntário na região.
De acordo com a MSF, não só as estruturas de acolhida e recepção são insuficientes para a demanda, como as autoridades locais não cooperam e dificultam a atuação de organizações humanitárias voluntárias. “Alguns dos inúmeros obstáculos administrativos enfrentados pela MSF no último ano incluem a recusa por parte da prefeitura de Kos (ilha grega) de permitir que a MSF montasse tendas para abrigo emergencial em um estacionamento na cidade e autoridades locais não permitirem que equipes montassem tendas em um parque em Lesbos (ilha grega)”, diz o relatório.
O documento cita ainda depoimentos de refugiados e imigrantes sobre suas experiências durante a travessia e a chegada à Grécia. Dois deles acusam pessoas trajadas como autoridades gregas de propositadamente tentarem afundar os barcos nos quais estavam e de não prestarem auxílio às embarcações que pediam socorro – uma violação da lei internacional. “Nós fomos atacados entre a Turquia e a ilha (Farmakosini), por três homens uniformizados a bordo de um grande barco metálico cinza. Eu vi três homens adultos a bordo, vestindo uniforme naval azul escuro, com a bandeira grega no ombro. Nós nos aproximamos, mostramos que tínhamos crianças para receber ajuda. Eu não consigo esquecer o que aconteceu. Uma vez que nós estávamos perto deles, eles usaram um arpão para furar a frente do nosso barco. Eles fizeram dois buracos e todos entraram em pânico. Eles queriam nos matar”, disse à MSF um homem sírio, recém-chegado à ilha de Kos. O governo grego nega as acusações. A MSF, por sua vez, critica a falta de investigações sobre esse tipo de incidente.
Em outro depoimento, um refugiado relata ter sido submetido a condições degradantes por membros do Exército grego, na ilha de Farmakonisi, uma base militar do país. “Na ilha militar, eles nos fizeram ajoelhar e esperar sob o sol por muitas horas. (...) Eles amarram nossas mãos e nos estapeavam sem razão nenhuma. Quando nós estávamos dormindo, eles entravam no cômodo e nos batiam com bastões de ferro. Eles tomaram minha bateria de celular e depois pediram 20 euros para devolvê-la”, disse um homem sírio atendido pela MSF em Leros, outra ilha grega. “Nós estávamos na ilha militar. Um soldado gritava em inglês: eu não ligo para as leis – para mim, as leis não existem – aqui só existe uma lei – a lei do Exército”, relatou um homem afegão, também tratado pela MSF.
Rumo ao norte, mais abusos

O relatório ainda traz uma série de relatos de abusos e violências contra refugiados e imigrantes por parte não só de redes criminosas, mas como de autoridades de segurança nos países utilizados como rota de travessia por terra para o norte do continente, comoMacedônia, Sérvia, Croácia e Eslovênia. “Eu sou da Síria. Tenho quatro filhos pequenos. Eu viajei da Grécia para a Macedônia, mas fui preso e deportado para a Grécia quatro vezes. Eu fui agredido pela polícia macedônia. Eles tomaram todo meu dinheiro. Na estrada para a Sérvia, a máfia me parou, roubou todos os meus pertences e me deixou em uma área isolada. Quando fui pedir ajuda para a polícia sérvia, eles me prenderam por 10 dias e me deportaram de volta para a Macedônia. Eu voltei à Sérvia e continuei para a Hungria. Lá fui preso, algemado e jogado numa cela sem água ou comida. Eu estava com sede e doente, mas quando pedi por água, o policial respondeu: 'Vou mijar em uma xícara e você beberá isso!”, contou um homem sírio atendido pela MSF, próximo à floresta de Bogovadja, na Sérvia.
Resultado dos traumas vividos, em seus países de origem e na jornada em busca de asilo, a organização afirma que atende um grande número de refugiados e imigrantes que sofrem de doenças de natureza mental como síndrome do pânico, estresse pós-traumático e depressão – mais de 12 mil pessoas foram tratadas pela MSF na Grécia e na Sérvia por condições relacionadas a traumas. “A maioria das patologias tratadas por nossas equipes médicas poderia ser facilmente prevenida se a passagem segura e recepção que atendesse os padrões humanitários fossem implementados nos Estados da União Europeia”.
O documento também critica as complicadas burocracias do procedimento de pedido de asilo nos países europeus e a iniciativa de países como Hungria e Bulgária de construírem barreiras para impedir entrada e trânsito de refugiados e imigrantes. Para a MSF, tais iniciativas não coíbem os fluxos migratórios e deixam essas populações em condições mais vulneráveis durante sua jornada.  “Longe de conter o fluxo de refugiados e imigrantes, a falta de assistência e as restrições a movimento da Europa simplesmente forçaram pessoas desesperadas a colocar suas vidas e sua saúde em risco, com os serviços de coiotes e tomando rotas traiçoeiras (...). Predadores do desespero das pessoas, coiotes são o violento e abusivo subproduto das vergonhosas políticas migratória restritivas da Europa”, afirma o relatório.
A MSF conclui pedindo que os Estados europeus facilitem os meios legais para pessoas solicitarem asilo no continente – hoje, só é possível realizar o pedido quando se chega a solo europeu – e que aumentem o investimento nas estruturas de resgate e recepção de refugiados e imigrantes. “Como é provável que as pessoas continuem buscando na Europa assistência e proteção muito necessárias em 2016, é hora de a Europa abolir de sua rota obstáculos e oferecer assistência e passagem legal e segura para refugiados e imigrantes que fogem de condições desesperadoras”, finaliza o relatório.
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Autor Everaldo Paixão

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